Mensagens

A mostrar mensagens de 2011

Mudar de vida com um bolo de frutas

Depois de um dia passado no tribunal, Lara chegou a casa, atirou os sapatos para o canto, deixou o vestido caído sobre o soalho, vestiu jeans e um camisolão de lã que lhe dava pelos joelhos, prendeu o cabelo, arregaçou as mangas e enfiou-se na cozinha. Ali sentia que controlava tudo. Ali podia dedicar-se a criar, sem discutir, debater, defender, acusar, sem maquilhagem, saltos altos, cabelo impecável, fato alinhado, sem fingir interesse ou aparentar desinteresse. Ali podia ser ela própria, com a sua vida, infeliz vida, mas sua. Podia chorar, rir, pensar sem se sentir vigiada, deixar descair os ombros, passar as mãos sujas de farinha pela testa. Podia sentir o que lhe apetecia, sem se preocupar com a expressão do rosto, esquecendo por momentos o mundo de aparências em que andava metida. Naquele dia sentia as emoções em completo desalinho. Vira a lei sobrepor-se à justiça, discutira com o chefe por divergências estratégicas na condução de um caso em que estava a trabalhar e, claro, z

Maestro sapo, ouvidos tapo!

O sapo Adão tinha tudo para ser campeão.  —  De quê?   —  pergunta o curioso leitor, quando se interessa pelo que lê e do texto sente o sabor.  —  Sabor?   —  volta a inquirir espantado, sentindo-se enganado com tamanho abuso dos sentidos, porque só muito esfomeado se punha a comer os livros! Se o narrador está a brincar, o melhor mesmo é parar.  Podem rir à vontade, mas a grande verdade é que o sapo Adão em vez de verde era azulão. E isso não era o mais estranho, dado que ganhava a vida a agitar um pau castanho.  —  Explique-se lá, ó narrador, que a barafunda está a ficar pior! É simples a explicação: o sapo Adão dirigia uma orquestra de batuta na mão. Era maestro, com tanto jeito, que parecia guiado por um astro, quando tudo saía direito. Só havia um problema: quanto melhor conhecia o tema, mais preguiça lhe chegava e mais ensonado ficava. Não era raro vê-lo adormecer e da orquestra se esquecer. A música silenciava, a plateia assobiava e lá acordava o sapo Adão, que mandava

Lagarta cantora, essa agora!

A lagarta Rita era elegante e bonita, verdinha como uma alface e com uma pinta amarela na face que lhe dava um ar diferente do resto da sua gente. Diferente é o mínimo que se pode dizer desta lagarta que do seu povo estava farta, por se sentir incompreendida e ao mesmo tempo perdida, querendo o que parecia não poder ter e tendo o que certamente não queria. Chega de perder leitores que não gostam de grande largura de escritos e entre-se nos pormenores e nos detalhes esquisitos. Cá vai então a primeira confissão: a Rita era uma lagarta encantadora que queria ser cantora. Mas não cantora de fados ou de musicais animados. Pretendia cantar ópera e, para conseguir o seu intento, todos os dias havia cantoria, fizesse sol ou soprasse vento. E era ouvi-la de manhã cedo, ainda o galo se espreguiçava a medo, a treinar a vocalização e a desafinar até mais não.  —  Lá está ela outra vez. Que mal é que a gente lhe fez!? – queixavam-se os animais, incapazes de dormir mais. Num belo dia pegou no

Era um ás, mas andava para trás

Era uma vez um rapaz que tinha tudo para ser um ás. Sabia de matemática, de química, de gramática e até de mímica, mas preferia mandriar, o professor ignorar e os colegas provocar. Já ninguém tinha paciência para tamanha incongruência, entre capacidade e vontade. O professor aborrecia-se, mandava trabalho, que ele esquecia ou, se não esquecesse, era como se todos os erros possíveis de propósito cometesse. Irritado com a evolução do estudante, explicou aos pais a situação preocupante. Estes fizeram orelhas de mercador e recusaram-se a colaborar com o professor. "Que família estranha a deste aluno, que em vez de se preocupar com o estudo, prefere ignorar o problema, como se fosse esse o seu lema!", pensou o professor, com desalento, ainda que não fosse seu intento esquecer o estranho rapaz e deixá-lo ficar para trás. Lembrou-se então de dar ao José uma lição. Com a turma combinaria que coisa nenhuma correcta se diria. Num dia bem acertado, tal como fora combinado, o profes

Serpente e galinha, que imaginação a minha!

Era uma vez uma galinha que contava até três. Vivia num galinheiro todo catita, para os lados da Benedita. Chocou ovos numa Primavera quente e de um deles saiu uma pequena serpente. Alvoroçado, todo o galinheiro se pôs a cacarejar, até a cobra se assustar. "Estranha filha", pensou a mãe-galinha. Decidiu manter-se de bico calado, para que o caldo não ficasse entornado. Dali para a frente manter-se-ia distante, para nenhuma zanga ir avante. —  São doidas as galinhas se pensam meter-se com filhas minhas!   —  murmurou, escondendo a serpente debaixo da asa e levando toda a ninhada para casa. Dos seis ovos chocados, saíram três pintos bem contados. Mais fossem, perder-se-ia nas matemáticas, que galinhas são aves práticas. Três pintainhos e uma serpente catita, qual delas a mais bonita. Os dias passavam, as crias cresciam e o galinheiro fazia por ignorar que estranhas coisas por ali se viam. Ainda assim, quando não havia olhos de mãe por perto, uma bicadita ou outra na serpente era

Psss, o filme é da crise de ontem!

Para quem não gosta de filmes de terror, a sensação de viver na actual conjuntura pode parecer semelhante a ter entrado na sala de cinema errada, sem possibilidade de fuga devido ao encravamento das portas. Há que sentar, respirar fundo e fingir que se está numa qualquer praia de areias finas ou, melhor, num qualquer museu recheado de clássicos. De um lado a crise.  Do outro lado, o desânimo. Para quem não gosta de filmes de terror e descrê de receitas milagreiras que, por segundos, parecem milagrosas, acordar de manhã pode ser aterrador, porque os líderes se vão reunir e chegar a um consenso, porque os líderes se reuniram e o consenso se esfumou (mas não saiu nem fumo branco nem preto, porque tais reuniões não exigem chaminé), porque os líderes se reuniram e acertaram as grandes linhas, sorriram para as câmaras, mas não acertaram detalhes (ou talvez não tenham acertado nos detalhes). Porque os líderes são como a sopa que se põe na mesa: é o que se pode arranjar! Para quem não gosta de

Primeiro dia de inverno

Noite cerrada. Chegou, de repente, o frio e, com ele, a necessidade de aquecer uma alma que, estando já enfraquecida, conseguira manter-se iluminada nos últimos meses à custa de apanhar um brilhozinho dos raios de sol que haviam conquistado o fim do Verão e o princípio do Outono. Noite cerrada. Breu. Chuva intensa. Desabou o céu em poucos minutos, pelas três horas da madrugada, com nuvens de bocarras abertas a expulsar água a rodos. Noite cerrada. O Verão transformado no seu oposto, sem ponte, sem dias assim-assim, para temperar o espírito com menos sal e prepará-lo para a dieta que há que cumprir. O sono foi transformado em coisa pouco sã, teimando em ignorar a madrugada e com vontade de provocar pesadelos à mente desperta. Noite cerrada. Desaba o mundo exterior. Desaba o mundo interior, que não resiste à tempestade e deixa entrar o vento furioso, que fustiga as janelas, direitinho ao coração. Arrefece-o. A mente, cada vez mais acordada, ouve trovões que não existem, gritos que não s