Mudar de vida com um bolo de frutas

Depois de um dia passado no tribunal, Lara chegou a casa, atirou os sapatos para o canto, deixou o vestido caído sobre o soalho, vestiu jeans e um camisolão de lã que lhe dava pelos joelhos, prendeu o cabelo, arregaçou as mangas e enfiou-se na cozinha. Ali sentia que controlava tudo. Ali podia dedicar-se a criar, sem discutir, debater, defender, acusar, sem maquilhagem, saltos altos, cabelo impecável, fato alinhado, sem fingir interesse ou aparentar desinteresse. Ali podia ser ela própria, com a sua vida, infeliz vida, mas sua. Podia chorar, rir, pensar sem se sentir vigiada, deixar descair os ombros, passar as mãos sujas de farinha pela testa. Podia sentir o que lhe apetecia, sem se preocupar com a expressão do rosto, esquecendo por momentos o mundo de aparências em que andava metida.
Naquele dia sentia as emoções em completo desalinho. Vira a lei sobrepor-se à justiça, discutira com o chefe por divergências estratégicas na condução de um caso em que estava a trabalhar e, claro, zangara-se pela décima vez na semana com o marido. Ciúmes, ciúmes, ciúmes. O que via, o que não via mas imaginava, o que gostaria de ter visto, tudo era motivo para uma cena.  
No refúgio da sua cozinha, a preparar-se para fazer um bolo de frutas, Lara passou em revista o ano que finalizava. Açúcar, gemas, mexer, mexer, até ficar cremoso. Os desentendimentos em casa tinham aumentando de tom e de frequência, a sensação de vazio preenchia-lhe cada vez mais dias. Cortar as frutas em pedacinhos. Se juntasse os pedacinhos da sua vida conseguiria montar um puzzle que valesse a pena ver? Cada vez tinha mais dúvidas disso. Cortar, cortar as frutas, para se misturarem com a massa e passarem despercebidas.
Ali estava uma boa perspectiva para o ano que se aproximava: passar despercebida. Depois de anos a tomar decisões, a liderar e defender causas e casos, a viver uma vida de mulher que obtém sucesso custe o que custar e aparenta felicidade das unhas dos pés à raiz dos cabelos, apetecia-lhe viver a vida de quem não tem câmaras apontadas nem de enfrentar expectativas tão elevadas e objectivos tão difíceis de atingir. E sobretudo viver a vida de quem pode chegar a casa e tem um ombro onde deitar a cabeça, ouvidos que escutam o que é dito, braços que apertam e deixam o mundo, os problemas do mundo, do lado de lá das paredes. E sobretudo viver a vida de quem não desiste de si. Juntar as frutas cortadas, licor, noz moscada.
Lara riu da possibilidade de abandonar tudo e imaginou a cara que faria qualquer mulher que passa o dia a trabalhar oito horas para ganhar o ordenado mínimo se lhe falasse da vontade, que começava a enraizar-se, de largar alguns milhares por mês em nome da paz de espírito. Disso e daquela ideia, talvez tola, talvez ingénua, de concretizar um ou outro sonho, diferente daqueles que se obtêm quando se deitam colheradas de massa sobre óleo a ferver. Ligar o forno, juntar a farinha, bater as claras em castelo. Envolver.
Tendo a certeza de que não desejava outro ano como aquele que passara, continuava a dúvida se teria coragem para largar o que tinha. Não era mulher de meias medidas. Nunca fora. Precisava de mudar radicalmente. E não, para ela isso não significava ir ao cabeleireiro e pintar o cabelo de outra cor. Ou ir às compras e mudar o guarda-roupa. Ou arranjar um amante. Ou comprar uma casa maior. Ou despedir-se do chefe com um “até logo” para aceitar a proposta de emprego que tinha em cima da mesa, de um escritório concorrente. Ou passar um mês na Papua Nova Guiné.
Colocar a massa na forma, meter no forno. Teria coragem? Depois de anos de treino para pensar em todos os detalhes, para antecipar jogadas, para evitar erros, esquecera-se da mulher impulsiva que um dia fora. Que sonhara viajar sem destino, ter uma casa cheia de filhos, ter amigos a entrar e a sair sem pedir licença, participar em projectos solidários, ser voluntária nas horas vagas ou vagar horas se estas lhe faltassem. Conseguira não ter filhos, não ter tempo, ter amigos tão ocupados quanto ela, viajar muitas vezes mas com destino, agenda, reuniões bem planeadas. E vaga não passava de uma palavra usada pelos meteorologistas.
Começou a sentir um peso nos ombros. Todos os anos era assim: antecipava projectos, mudanças, menos trabalho, mais formas de fazer algo que lhe apetecesse mesmo. Todos os anos era assim: chegava ao final de Dezembro com muitos projectos realizados, algumas mudanças, sobretudo mais trabalho e menos vontade de continuar.
Teria enterrado a mulher que queria ser? Cheirava a bolo. Estava pronto. Desenformar. Impecável. Deixou o prato na bancada da cozinha. Dirigiu-se ao quarto, enfiou algumas peças de roupa numa pequena mala de viagem, objectos pessoais, fez um telefonema para um número que não usava há anos e deixou-se estar uns momentos a olhar em redor. Não sentia a menor sensação de perda. Partiria para Timor logo que fosse possível, para participar no projecto de um amigo de quem se afastara porque os caminhos que seguiam haviam deixado de se cruzar. Aí o tempo, o seu tempo, ganharia outro sentido. A vida, a sua vida, talvez ganhasse outro sabor.
Deixou um pequeno bilhete de despedida. Pegou no carro e saiu. Não sabia onde passaria os dias seguintes. Esperava que o ano que estava à porta fosse diferente do anterior. Melhor? Pior? Essas não eram as perguntas certas.

© Elisabete Lucas

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