Sem título, com toda a propriedade
Meses de invernia. Manto de nuvens gordas e dominantes, que
sopram segredos duros e frios, relegando os sonhos para o mundo dos impossíveis.
Os olhos habituam-se à parca luz dos dias e, com o hábito, parece esvair-se a vontade.
Engano puro, de quem principia a esquecer o nome das sensações, com medo de se
deparar com vocábulos que quer que habitem longe de si. A vontade permanece
agarrada a uma não-desistência de explicação dúbia, presa nos escombros da casa
que ruiu ao ser apanhada nas teias de um terramoto que nada deve à
meteorologia. Em vão procuram os olhos as estrelas das noites abertas. Em vão
espreitam nas frestas de céu à procura de uma porção de sol. Em vão aguardam as
andorinhas, que se aquecem noutras paragens. Em vão, porque os olhos já mal
enxergam, doridos que estão devido à nova cor do mundo.
Meses de invernia, que vazam grossas lágrimas lá do alto,
como se nada mais houvesse a oferecer, principiaram por encharcar a terra, para
depois entrarem pelas lembranças adentro. Só isso explica o esmorecimento de
ânimo, a ausência de garra. Talvez “lutar” tenha deixado de ser verbo sinónimo
de combater, de resistir, de pelejar, e se limite ao “tapar com luto”. Talvez o
produtivo e afincado inverno tenha encolhido as memórias.
Meses de invernia não impedem as flores de manifestarem a sua natureza. Talvez elas consigam fazer com que este “talvez”, de exagerada duração, se deixe de “porventuras” e se transforme na certeza de que nem tudo se
apagou e é possível começar de novo. Com um novo título.
© Elisabete Lucas
© Elisabete Lucas
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