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A mostrar mensagens de 2012

Mar imenso, deixa-me entrar

Mar imenso, deixa-me entrar leva-me para longe, ao infinito além do que os olhos alcançam: onde se forma o arco-íris as cores se fundem os ruídos se ausentam as gentes não chegam as guerras se desconhecem as fomes perdem registo na memória onde o tempo não importa, e eu possa ser como sou sem mais. © Elisabete Lucas

Quando a teoria colapsa

Era uma vez um burro que habitualmente pregava aos sete ventos (havia sempre correntes de ar para aqueles lados!), porque existiam por ali poucos ouvidos predispostos a pregações. Certo dia, ia a passar uma burra com o pêlo todo eriçado (fica a dúvida se levantado pela ventania, se pelo alcance do olhar!), quando lhe deu (a ele) um formigueiro epistemológico. Imitou dois relinchos para tirar o pó da garganta (dando mostras de personalidade, sem querer), e proferiu, levantando o focinho para o vento quente que soprava mais de cima:  — Q uanto melhor não será sentir um amor de morte do que uma morte de amor? A burra franziu o sobrolho e sorriu no canto do grosso lábio. O burro interpretou isso como um interesse invulgar pela sua prelecção, e, ao preparar-se para a subsequente demonstração teórica de tão evoluído raciocínio, sofreu um colapso arterial. Parou o coração, parou o cérebro. Ficou o dito por dizer. Por isso, foi ela quem falou, não sem antes ter imitado dois relinchos para demo

Voa gaivota, encontra o teu destino

Voa gaivota, encontra o teu caminho sobe bem alto, sobe sempre até céu leva-me contigo num qualquer cantinho para que eu, na subida, encontre o meu. Deixa-me ver da lonjura do universo a imensidão do que deixei sem olhar para que eu nesse olhar assim imerso sinta saudade e, quem sabe, queira voltar. Fixo o mar revolto, vigoroso, imenso sigo o teu voo, invejo-te as asas, a liberdade vejo o mundo lá do alto e sem querer penso que o mundo lá em baixo me deixa saudade. Deixa-me ao vento gaivota, segue o teu destino não te prendas à minha própria sorte abro os braços, fecho os olhos, estou a voar sem tino sinto-me, como nunca, a muitas milhas da morte. © Elisabete Lucas

Um belo dia para dormir sobre as ondas

Praia. A inclemência do Sol desincentivaria tal opção em tempos normais. Mas aqueles não eram tempos desses. A chuva que atravessara toda a Primavera prolongara-se pelo início do Verão, até àquele Sábado em particular, em que a temperatura, o ambiente, a luminosidade mudaram por completo o cenário dos dias anteriores, das semanas passadas, em que as janelas mal se abriam, em que as cortinas se mantinham fechadas, como que a isolar os habitantes das casas de um mundo cheio de cinza. O dia era quente e húmido. Trazia as respirações pesadas e os olhos semicerrados. Apesar da inclemência do Sol, sem espanto a praia estava coberta de corpos. Um mar de gente juntava-se a um mar de água mansa, convidativa. O cheiro a maresia, a remeter a memória para a infância feliz de uma praia quase deserta e coberta de algas, enchia o peito com ar doce.   O esforço de encontrar uma migalha de espaço onde estender uma simples toalha estranhamente parecia ter lugar no conjunto das coisas boas de um di

Foi um, veio outra

No dia em que Simão finalmente se foi, de morte tão inesperada quanto ridícula, os ombros de Claudette curvaram-se um pouco mais, contrariando a quase, quase certeza de que se endireitariam no mesmíssimo minuto em que os seus ouvidos escutassem aquele som sumido e arrastado que caracteriza a fala dos mensageiros de certas notícias: — Lamento informá-la, minha senhora, mas o seu marido acaba de falecer! A história não se passou assim, nem para os ombros, nem para o mensageiro. Uma certeza havia: ele estava visivelmente falecido. Claudette dera-se ao trabalho de procurar no dicionário uma palavra que exprimisse o seu desejo da forma menos cruel possível e “falecimento” ficou-lhe na memória, como se representasse pouco mais de um desmaio permanente. Em dias mais agrestes não chegava e o desejo formulava-se em pensamentos mais fortes: — Vê se morres! Ali estava ele mais do que morto, despedaçado, tão ferido quanto um guerreiro em campo de batalha, coisa sem espanto quando um ca

Paris, porque sim

— Mulher, que fazes aqui? Perdoem-me começo tão inóspito, mas dificilmente encontraria frase que mais se adequasse a iniciar a curta história que tenho para contar. Porque a realidade é muitas vezes maquilhada para tomar uma beleza que não tem, abstenho-me aqui de adocicar factos ou atribuir qualidades quando os defeitos prevalecem. Não me orgulho da frase que me saiu naquela manhã em Paris, ao ver uma pessoa que me tinha sido tão chegada, ainda que se tivesse distanciado por razões que aqui não trazem acrescento, deitada num banco do Bois de Boulogne, coberta de jornais, para se proteger daquele frio que a cidade sabe tão bem misturar com o sol a descobrir. Mulher, pessoa adulta do sexo feminino. O dicionário sabe pouco sobre aquela de quem falo e eu apenas uns diminutos elementos acrescentarei à sua identificação, por razões de segurança, dela está claro, ainda que não se trate de um caso de polícia mas de um caso de malícia. — Moi? J’attend mon fiancé ! A manhã começara