Foi um, veio outra
No dia em que Simão finalmente se foi, de morte tão inesperada quanto ridícula, os ombros de Claudette curvaram-se um pouco mais, contrariando a quase, quase certeza de que se endireitariam no mesmíssimo minuto em que os seus ouvidos escutassem aquele som sumido e arrastado que caracteriza a fala dos mensageiros de certas notícias:
— Lamento informá-la, minha senhora, mas o seu marido acaba de falecer!
A história não se passou assim, nem para os ombros, nem para o mensageiro. Uma certeza havia: ele estava visivelmente falecido. Claudette dera-se ao trabalho de procurar no dicionário uma palavra que exprimisse o seu desejo da forma menos cruel possível e “falecimento” ficou-lhe na memória, como se representasse pouco mais de um desmaio permanente. Em dias mais agrestes não chegava e o desejo formulava-se em pensamentos mais fortes:
— Vê se morres!
Ali estava ele mais do que morto, despedaçado, tão ferido quanto um guerreiro em campo de batalha, coisa sem espanto quando um camião desgovernado nos passa por cima. E a ideia de um simples desmaio duradouro deu lugar à visão horrenda de um corpo desfigurado na morgue do hospital, uma imagem que tinha quase, quase certeza jamais lhe sairia da cabeça. A imagem e a culpa, claro.
Sejamos claros: estas notícias não se coadunam com meias-verdades, ainda que não sejam casos de polícia mas casos de sanidade mental com pontos de interrogação. Claudette desejava um certo estado de adormecimento ao marido quando se sentia particularmente deprimida, coisa menos invulgar do que se pensaria atribuir a uma mulher que tinha tudo, menos alguns parafusos, como diriam os vizinhos, naquele tom superior, barrado de ironia, que caracteriza certos grupos sociais. Recusava psicólogos, de psiquiatras nem queria ouvir falar, e os amigos foi conseguindo afastá-los todos, por lhes sugar paciência e energia.
— Lamento informá-la, minha senhora, mas o seu marido acaba de falecer!
A história não se passou assim, nem para os ombros, nem para o mensageiro. Uma certeza havia: ele estava visivelmente falecido. Claudette dera-se ao trabalho de procurar no dicionário uma palavra que exprimisse o seu desejo da forma menos cruel possível e “falecimento” ficou-lhe na memória, como se representasse pouco mais de um desmaio permanente. Em dias mais agrestes não chegava e o desejo formulava-se em pensamentos mais fortes:
— Vê se morres!
Ali estava ele mais do que morto, despedaçado, tão ferido quanto um guerreiro em campo de batalha, coisa sem espanto quando um camião desgovernado nos passa por cima. E a ideia de um simples desmaio duradouro deu lugar à visão horrenda de um corpo desfigurado na morgue do hospital, uma imagem que tinha quase, quase certeza jamais lhe sairia da cabeça. A imagem e a culpa, claro.
Sejamos claros: estas notícias não se coadunam com meias-verdades, ainda que não sejam casos de polícia mas casos de sanidade mental com pontos de interrogação. Claudette desejava um certo estado de adormecimento ao marido quando se sentia particularmente deprimida, coisa menos invulgar do que se pensaria atribuir a uma mulher que tinha tudo, menos alguns parafusos, como diriam os vizinhos, naquele tom superior, barrado de ironia, que caracteriza certos grupos sociais. Recusava psicólogos, de psiquiatras nem queria ouvir falar, e os amigos foi conseguindo afastá-los todos, por lhes sugar paciência e energia.
Como explicar algo tão difícil? Claudette era uma mulher de bom coração, generosa, atenta aos problemas dos outros. Só que no seu nascimento talvez tenha passado pela zona uma fada que atribui talentos com a varinha destrambelhada e deu-lhe o dom do controlo. Resultado: aquela francesa nascida em berço dourado, reunindo tudo para ser boa gente, só se sentia bem a dominar os outros. Se a magia entra no sangue é algo que está por provar. Provado estava, no entanto, que o espírito controlador tendia a piorar com a idade.
O marido era outro poço de humana condição, um poço igualmente preenchido de qualidades e de defeitos. Cinquenta, cinquenta. Se toda a história tem um senão, o desta aqui se explica: Simão tendia a oferecer ao mundo as qualidades e, por isso, era considerado uma jóia de homem, e à mulher os defeitos e, por isso, era considerado um marido que bem podia partir para terras distantes, em horizontal posição de quietude, que não fazia falta nenhuma.
Procurar razões nos sentimentos, equivale a procurar uma pulga num elefante macho, razão pela qual se poupa aqui o leitor à morosidade e maçada.
Estavam tão longe os tempos em que ela lhe chamava a toda a hora mon biscuit, que mais parecia coisa de sonho antigo, traduzido em palavras para não se perder na memória. Seja como for, nos últimos anos, o biscuit saía de vem em quando, porque hábitos são coisas entranhadas, de um sítio cada vez mais longe do coração. Claudette era desprezada, espezinhada, humilhada, amachucada. Se a rima aqui se destaca é porque certas rimas transmitem o peso das palavras e estas eram tão pesadas que tornavam a vida daquela mulher num fardo difícil de carregar. O que a motivava a permanecer num lar tão sombrio só se pode atribuir a uma duvidosa sanidade mental, ainda que não confirmada por registos médicos de espécie alguma, por falta de consultas.
Foi-se o homem, veio a culpa. Uma culpa densa, incómoda, ininterrupta. Não pela morte em si, longe das suas mãos, e tão rápida quanto estupidamente imerecida, considerando o momento em que se deu, aquele preciso momento.
Era um final de tarde marcado por um chuvisco espesso. Uma criança, desconhecida, de mochila às costas, entretida com o seu mundo e esquecida de que o real tem semáforos, resolveu atravessar a estrada, sem se lembrar da existência de regras, como as de trânsito, sem reparar no camião que lá vinha, sem se aperceber de que aquele gigante de várias rodas chiava, chiava como um possesso, mas não iria conseguir travar a tempo. Simão, parado no passeio à espera de um certo verde para dar marcha aos pés, agarrava uma pasta cheia de documentos acabadinhos de assinar por um novo cliente. O seu rosto sorria. Sentia-se feliz, cheio de força, poderoso. Talvez tivesse sido uma certa sensação de invencibilidade que o levou a correr para a frente do camião e atirar a criança para longe. Talvez tivesse sido altruísmo. Talvez tivesse sido paragem cerebral. Os mortos não falam e os vivos não fazem ideia. A criança passou a dever a vida a um homem que morreu. Claudette passou a suportar a culpa de uma morte que não provocou.
Os seus ombros, em vez de se levantarem, curvaram-se mais, quando lhe foi dada a notícia. E um pensamento não mais a largou:
— Mon biscuit, por favor vem buscar-me que não suporto esta morte que vivo todos os dias!
© Elisabete Lucas
O marido era outro poço de humana condição, um poço igualmente preenchido de qualidades e de defeitos. Cinquenta, cinquenta. Se toda a história tem um senão, o desta aqui se explica: Simão tendia a oferecer ao mundo as qualidades e, por isso, era considerado uma jóia de homem, e à mulher os defeitos e, por isso, era considerado um marido que bem podia partir para terras distantes, em horizontal posição de quietude, que não fazia falta nenhuma.
Procurar razões nos sentimentos, equivale a procurar uma pulga num elefante macho, razão pela qual se poupa aqui o leitor à morosidade e maçada.
Estavam tão longe os tempos em que ela lhe chamava a toda a hora mon biscuit, que mais parecia coisa de sonho antigo, traduzido em palavras para não se perder na memória. Seja como for, nos últimos anos, o biscuit saía de vem em quando, porque hábitos são coisas entranhadas, de um sítio cada vez mais longe do coração. Claudette era desprezada, espezinhada, humilhada, amachucada. Se a rima aqui se destaca é porque certas rimas transmitem o peso das palavras e estas eram tão pesadas que tornavam a vida daquela mulher num fardo difícil de carregar. O que a motivava a permanecer num lar tão sombrio só se pode atribuir a uma duvidosa sanidade mental, ainda que não confirmada por registos médicos de espécie alguma, por falta de consultas.
Foi-se o homem, veio a culpa. Uma culpa densa, incómoda, ininterrupta. Não pela morte em si, longe das suas mãos, e tão rápida quanto estupidamente imerecida, considerando o momento em que se deu, aquele preciso momento.
Era um final de tarde marcado por um chuvisco espesso. Uma criança, desconhecida, de mochila às costas, entretida com o seu mundo e esquecida de que o real tem semáforos, resolveu atravessar a estrada, sem se lembrar da existência de regras, como as de trânsito, sem reparar no camião que lá vinha, sem se aperceber de que aquele gigante de várias rodas chiava, chiava como um possesso, mas não iria conseguir travar a tempo. Simão, parado no passeio à espera de um certo verde para dar marcha aos pés, agarrava uma pasta cheia de documentos acabadinhos de assinar por um novo cliente. O seu rosto sorria. Sentia-se feliz, cheio de força, poderoso. Talvez tivesse sido uma certa sensação de invencibilidade que o levou a correr para a frente do camião e atirar a criança para longe. Talvez tivesse sido altruísmo. Talvez tivesse sido paragem cerebral. Os mortos não falam e os vivos não fazem ideia. A criança passou a dever a vida a um homem que morreu. Claudette passou a suportar a culpa de uma morte que não provocou.
Os seus ombros, em vez de se levantarem, curvaram-se mais, quando lhe foi dada a notícia. E um pensamento não mais a largou:
— Mon biscuit, por favor vem buscar-me que não suporto esta morte que vivo todos os dias!
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