Paris, porque sim

— Mulher, que fazes aqui?
Perdoem-me começo tão inóspito, mas dificilmente encontraria frase que mais se adequasse a iniciar a curta história que tenho para contar. Porque a realidade é muitas vezes maquilhada para tomar uma beleza que não tem, abstenho-me aqui de adocicar factos ou atribuir qualidades quando os defeitos prevalecem. Não me orgulho da frase que me saiu naquela manhã em Paris, ao ver uma pessoa que me tinha sido tão chegada, ainda que se tivesse distanciado por razões que aqui não trazem acrescento, deitada num banco do Bois de Boulogne, coberta de jornais, para se proteger daquele frio que a cidade sabe tão bem misturar com o sol a descobrir.
Mulher, pessoa adulta do sexo feminino. O dicionário sabe pouco sobre aquela de quem falo e eu apenas uns diminutos elementos acrescentarei à sua identificação, por razões de segurança, dela está claro, ainda que não se trate de um caso de polícia mas de um caso de malícia.
Moi? J’attend mon fiancé!
A manhã começara estranha. Primeiro, a inusitada vontade de praticar jogging, para tornar aquela viagem a Paris mais absurda do que já era. Atalhando a sequência, registe-se apenas a minha débil vontade em estar fora da minha cama, da minha casa, do meu conforto, naquele 31 de Dezembro, para abrilhantar uma reunião que não precisava do meu brilhante cérebro mas da minha brilhante presença. Fui a Paris fazer de bibelot. Eu disse que esta narrativa seria atravessada de franqueza, razão pela qual corro o risco de parecer pretensiosa, ainda que medrosa fosse palavra mais apropriada para classificar a situação.
Passaria o réveillon longe de quem desejava e perto de quem abominava, porque sou uma daquelas pessoas para quem se olha de forma recorrente. Não tendo culpa da minha beleza, assumo a responsabilidade por ter permitido que o meu chefe fizesse uso dela e não do meu intelecto, ainda que este nada deva ao físico que me acompanha. Convenceu-me a fazer uma apresentação sobre a estratégia da empresa a um cliente com quem precisava de fechar negócio naquele mesmo dia, para salvar o seu ano, os seus objectivos, os seus bónus, o seu ego e sei lá o que mais tinha ele de salvar antes da meia-noite. Aceitei participar na reunião com medo de lhe despertar humores impróprios. Para não esquecer o desânimo que me arruinava a viagem, devido à sensação de ser capacho, ainda que jeitoso, colocara na mala de viagem, recheada de roupa capaz de incentivar a assinatura de qualquer contrato, uns ténis que raramente usava e um fato de treino meio desbotado, para ir correr uns quilómetros, coisa que raramente faço, por detestar tudo o que seja desporto.
Com propriedade designo então de estranha aquela manhã. Sendo rápida de cabeça, confesso que fiquei meio aparvalhada, perdoem-me a singeleza da linguagem, mas não me pouparei a esforços para falar do que aconteceu com a claridade merecida. A mulher, grande mulher, que aqui apresento, respondeu-me em francês.
O caro leitor, na sua imensa sabedoria, já terá descortinado que ela é portuguesa. Beirã, acrescento eu, nascida e criada em casa de xisto. Perguntar-me-á o que tem a morada que ver com a língua usada. Nada, em teoria. Apontam-se apenas os elementos que ajudam a explicar que há manhãs em que pouco parece bater certo, incluindo o facto de eu saber que a Eugénia, chamo-lhe assim porque um nome próprio facilita e eu sempre gostei deste, estava casada há mais de vinte e cinco anos com o mesmo homem, pai dos seus quatro filhos, paridos numa sequência de quatro anos, como se o sexo tivesse secado com a fartura de descendência. Estar à espera de um qualquer fiancé, ainda que soasse bem numa cidade romântica como Paris e num período do ano que era propício a romantismos, colava pouco, mesmo muito pouco, com aquela mulher, cuja vida se enganara na dose de generosidade.
— Mulher, que te aconteceu?
Eu continuei, com aquela linguagem provinciana, alheia à sua impecável pronúncia francesa. Percebi que apenas à segunda pergunta me reconheceu. Sentiu um misto de vergonha e de receio, ainda que eu percebesse de imediato a que se devia a primeira e só depois de duas horas de conversa entendesse a razão do segundo.
Eugénia começou por contar-me que estava em Paris em negócios, planeava abrir uma loja de artesanato diferenciadora e andava a contactar artistas, porque o seu conceito era absolutamente original, fantástico, iria ter um sucesso enorme, tudo se encontrava encaminhado para fazer uma inauguração em grande no início de Fevereiro. Linguagem dela, a contribuir para uma caracterização realista. Mulher de trabalho, ganhar dinheiro nunca foi um problema no seu caso (ainda que a dificuldade em mantê-lo andasse mais ou menos a par, como um tango bem dançado), jeito para as artes sempre teve e contactos no estrangeiro não eram nada que não conseguisse desenvolver. Tudo certo, na cena errada.
Olheiras profundas, cavadas por horas de choro. Olhar meio perdido. Roupa com alguns dias de uso. Banco de jardim, equivalente a hotel impróprio para mulher em negócios. Não sendo detective, não precisava sequer de ter lido todos os livros de Agatha Christie para saber que estava ali mentira gorda e grossa. Faltava saber porque me mentiria ela a mim, que fazia triste figura depois de ter corrido dois quilómetros, completamente despenteada e sem fôlego, em pleno pulmão da cidade, às oito horas da manhã do raio do dia que antecedia o ano seguinte. E ainda teria uma abstrusa reunião no meio da tarde, mais um jantar de gala no fim da noite! Ou era para me massacrar ou era para não se massacrar. Massacrar, dar cabo de algo, destruir (em sentido figurado).
Não sei o que me deu, porque normalmente as mentiras afastam-me e os ex-amigos costumam permanecer na prateleira do que não é actual, mas convidei-a para um café não muito longe do sítio em que nos encontrávamos. A mulher tinha olhos de fome e eu, não sendo boa pessoa assim à primeira impressão, estava com vontade de ver até onde ia a estranheza no resto da manhã, se bem que a partir da hora do almoço fosse bom que nada de estranho se intrometesse no meu caminho. Três croissants e dois café au lait aqueceram-lhe o estômago e ajudaram a soltar a verdade.
Eugénia fugira do passado, antes que este não a deixasse fugir a não ser num caixão de madeira barato, enfeitado com um ramo de trevos, como se apenas merecesse o que a natureza dá, porque gastar dinheiro com flores era coisa de perdulário.
Talvez consiga ser um pouco mais específica: ela fugira do homem que lhe fazia a vida negra, ainda que não lhe provocasse negrura na pele mas no espírito. Deprimida, cansada, obcecada por transformar a sua existência em algo que fosse mais do que amealhar uns euros para o fulano que se dizia seu marido gastar na jogatina ou na bebida, desistira de tudo, com a certeza de que era a única saída para não desistir de si. Ou, quem sabe, para impedir que o fulano que lhe prometera companhia na saúde e na doença, a deixasse num farrapo, de tanto desacompanhamento que lhe dava.
— Mulher, tiveste coragem para deixar o sacana?
Não me orgulho nem da repetição nem da linguagem pouco elaborada que aqui apresento, mas gosto mesmo da palavra “mulher” e era quase como se a Eugénia fosse uma digna representante da condição feminina. Quanto a sacana, saiu-me assim o palavreado, no quentinho do café. Soaria um pouco fora de tom, ainda que fosse acompanhado com som de fundo da bela La vie en rose, pela voz de Édith Piaf, se eu tivesse dito qualquer coisa como “Mulher, tiveste coragem de deixar aquele homem que sempre agiu sem ética?”. Pelo menos é o que eu penso.
Trabalhara à espera de amealhar para a velhice. Os anos iam passando e apenas conseguira amealhar desgostos e fármacos, porque a depressão apanhara o plural e com ele juntara já três psicólogos. Desistiu da casa, do marido, dos filhos, dos psicólogos, das contas bancárias, das contas da farmácia e daquelas que tinha que fazer sempre que chegava a casa para se cruzar o menos possível com o fulano que num dia de chuva intensa lhe jurara amor eterno. Só que eterno seria o inferno no qual se tornariam o resto dos seus dias, isso jurava Eugénia, embalada agora pela voz de Jacques Brel.
Um comentário à Sherlock Holmes pode ser útil para esclarecer o que me passou pela cabeça.
— Watson, o que pensa de tanta desistência?
— Que a mulher parou de lutar....
Of course not. Ela acordou agora para a luta. Infelizmente  não tem dinheiro nenhum.
Certo, não sou Conan Doyle. Sou apenas ex-amiga da Eugénia. Mas a certa altura da conversa o meu pensamento foi mesmo este: ela está completamente sem dinheiro, num país estrangeiro, fugida de um passado triste e com um futuro que apenas garantia que esse passado não teria a continuidade prevista.
Lembrei-me de um amigo, daqueles que desenrascam o que há para desenrascar, sempre pronto a ajudar gente que chega como ele ali chegou, com pouco mais do que a roupa no corpo. Português, emigrante em Paris, agora bem na vida. Liguei-lhe. Correndo o risco de me atrasar e de arriscar o meu emprego, apresentei-os naquela mesma manhã, pouco antes da hora de almoço. Soube-me bem fazer aquilo e ainda melhor colocar-lhe nas mãos os cinquenta euros que levava comigo e mais ainda prometer-lhe que me manteria em contacto. Desconheço se foi alguma reacção alérgica que me levou a experimentar aquela sensação de bem-estar pelas razões enumeradas. Como não voltou a repetir-se tal estado, deixei de me preocupar.
— Não te esqueças que a minha história tem um final feliz!  — disse-me Eugénia, enquanto nos despedíamos.
Estranho, estranho, estranho. A minha vida era uma chatice. Eu sentia que naquele dia apenas tinha de me preocupar com a escolha certa da roupa. A vida de Eugénia era um caminho para a felicidade, ainda que ela sentisse que somava preocupações como quem soma moedas de um cêntimo.
Já me esquecia. Ganhei a lotaria quando fui a Paris e, desde então, volto lá sempre que me apetece, apenas porque sim.

© Elisabete Lucas

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