Um belo dia para dormir sobre as ondas

Praia. A inclemência do Sol desincentivaria tal opção em tempos normais. Mas aqueles não eram tempos desses. A chuva que atravessara toda a Primavera prolongara-se pelo início do Verão, até àquele Sábado em particular, em que a temperatura, o ambiente, a luminosidade mudaram por completo o cenário dos dias anteriores, das semanas passadas, em que as janelas mal se abriam, em que as cortinas se mantinham fechadas, como que a isolar os habitantes das casas de um mundo cheio de cinza. O dia era quente e húmido. Trazia as respirações pesadas e os olhos semicerrados.
Apesar da inclemência do Sol, sem espanto a praia estava coberta de corpos. Um mar de gente juntava-se a um mar de água mansa, convidativa. O cheiro a maresia, a remeter a memória para a infância feliz de uma praia quase deserta e coberta de algas, enchia o peito com ar doce. 
O esforço de encontrar uma migalha de espaço onde estender uma simples toalha estranhamente parecia ter lugar no conjunto das coisas boas de um dia que, em tempos normais, seria incómodo, abrasador, desinteressante. A proximidade das pessoas tornava o contacto fácil e, surpreendentemente, não intrusivo. A areia, essa, escaldante, obrigava a caminhadas saltitantes e a passadas inseguras.
Celina deitou-se no seu pedacinho de calor e olhou em volta. Rostos, tantos. Sorrisos, muitos. Cores, variadas. Fechou os olhos e inspirou profundamente. Queria guardar um pedacinho daquelas horas, com receio de que um Sábado assim fosse um milagre em ano desavindo com a meteorologia. O cheiro do mar, misturava-se com o odor dos protectores solares, do tabaco, dos fritos, dos gelados. E os sons, o que diziam eles? Diziam risos, jogos, conversas de amigos, gritarias, pedidos. O Sol penetrava a pele, tornando bem presente a densidade e intensidade do calor.
Abandonando os seus poucos haveres no meio do gentio, Celina dirigiu-se ao mar. Havia meses que não sentia a água salgada no seu corpo, a frescura, a sensação pacificadora que sempre tinha quando chegava à borda da maré e deixava que esta a envolvesse. Empurrada por crianças que jogavam à bola, empurrada pelos gritos de quem se atirava à água, empurrada pelo aroma enjoativo de frango assado, correu mar dentro e nadou. Nadou, esquecendo-se do que fazia. Braçada, respiração, braçada. O mundo apagou-se. Havia apenas água e um corpo radiante por fazer parte daquela imensidade líquida, azul, serena.
Sentiu frio, um frio penetrante, que em tudo contrastava com o intenso calor do início da tarde. Ignorava quanto tempo tinha passado, porque o prazer não usa relógio. Sabia, no entanto, que não tinha forças para voltar e que estava suficientemente longe da praia para mal distinguir a costa. Um barco parecia aproximar-se. Tinha luzes acesas. O entardecer chegava de mansinho. O frio, esse, atingira os ossos, o cérebro e tentava adormecer-lhe o corpo. Alguém gritava bem perto:
— Está ali, ali mesmo, aponta a lanterna!
O sono ameaçava cerrar os olhos, como a noite encerraria o dia. Celina deixou-se dominar pelo cansaço. E adormeceu, embalada pela leve agitação da água. Se aquele era um dia de milagre, estava certa de que dormir sobre as ondas não traria dificuldade nenhuma!
 
© Elisabete Lucas

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