Fintar a realidade com sonho
Era nas proximidades da Serra da Estrela que morava o rapaz.
E quis o desfortúnio, na míope visão
do seu padrasto, que o pobre fedelho tivesse ganas de ser como as estrelas, com
um brilho que lhe vinha de parte incerta, pejado de naturalidade. Mas foi pouco
naturalmente que chegou aonde o sucesso habita, pois o seu crescer foi sempre
atravessado de montes. Aqueles onde apascentava as cabras que garantiam uma
pequena fatia do parco sustento da família e os que a adversidade se encarregou
de erguer ao longo dos anos.
Albino, assim se chamava o rapaz. Era o mais velho de seis
irmãos apenas pela metade. Morrera-lhe o pai quando tinha somente um ano. A
mãe, mulher ainda jovem, mas de existência apoquentada por causa da penúria,
voltou a casar com o primeiro que apareceu a aceitar uma morena trabalhadora,
com o encargo de um filho só seu. A chegada de um padrasto, ainda Albino mal
largara as fraldas, não significou amor, nem sequer aconchego. Significou o
começo de uma desigualdade que iria durar pela vida fora, acompanha de singularidade
de carácter.
Na sua infância, ia à escola de manhã, por mando da lei e
seguia para os campos à tarde, por mando do padrasto. Gostava de ambas as
tarefas, pois razões de complementar divergência. Aprendia as letras e as
matemáticas que lhe permitiam explanar os pensamentos das horas passadas nos
montes, criando histórias ou calculando riquezas que fingia um dia poder
ganhar, imaginando um mundo em que a pobreza não era palavra e, por isso, inexistia. E praticava a felicidade com
uma bola nos pés.
Contrariando a aparente ordem vigente que leva a procurar a
felicidade nas entranhas da carteira, Albino sabia, de um saber sem ensino, que
ser feliz é um sentir. E era esse sentir de estar-nas-nuvens, de contentamento,
de alegria, que a bola lhe trazia. Uma simples bola de trapos. Dois cães por
companheiros de jogo. Algumas cabras na assistência. Horas a correr e aos
pontapés, para chegar ao fim do dia com a barriga cheia de certeza de que a sua
existência poderia ser para sempre assim. Foi a vida no monte que lhe permitiu
o treino, deixando a certeza de que o caminho que queria passava pelo futebol. Contudo,
entre o querer e o ser moravam os obstáculos do percurso.
É sabido que o mundo está cheio de anjos anónimos. Albino
também os sentiu. Mas um deles tinha nome e ficaria para sempre nas lembranças
que o coração guarda. Chamava-se Faustino Alves e não era um professor de
educação física qualquer. Era um homem com olho para os talentos. Na sua
opinião, o rapaz tinha engenho para o futebol, do muito e do bom, pois era
dotado para quase todas as posições em campo e desconhecia a arrogância. Era
como uma estrela que brilha pela sua natureza, sem precisar de provar que tem
luz.
Contudo, num sítio em que estrela era nome de serra, Albino
parecia estar condenado a ficar agarrado à terra. Continuar os estudos era vida
que atingia um horizonte demasiado longínquo para um padrasto incapaz de enxergar
além do quintal. Inscrever-se num clube de futebol era pairar na esfera das
impossibilidades. Faustino Alves conhecia bem os contornos de algumas visões
curtas e, por razões que ficaram no inexplicado,
usou a força das notas para convencer o outro. Pagava os estudos do rapaz,
metia-o num clube e ainda comprava duas cabras por ano. «Menos uma boca que
come», concluiu o padrasto como razão de consentimento.
Foi assim que Albino se veio a tornar jogador profissional
aos 19 anos. Nas horas livres treinava uma equipa de rapazes sem posses para
pagar o gosto pela bola. A felicidade era assim. Era aquilo. Passado um ano o
sonho pareceu fugir-lhe. Quem o rodeava afiançou a morte do dito.
Chovia uma daquelas chuvas de nuvens escancaradas. Albino
ignorou o aviso da violência de água e fez-se à estrada para chegar ao treino à
hora marcada. Passados 10 minutos estava inconsciente, por ter embatido
violentamente contra uma árvore e deslizar encosta abaixo aos trambolhões, até
chocar contra umas rochas que travaram a continuação de uma viagem que teria a
morte como garantia.
O acidente não lhe tirou a vida. Todavia ficou-lhe com parte
de uma perna. Se o cenário tinha tudo para se cobrir de pano negro, Albino era
de essência colorida e, por isso, quis ser actor noutro teatro. Dedicou-se à
fisioterapia, afeiçoou-se à prótese, agarrou a vida, mais certo do que nunca de
que a hora de a perder nada tem que ver com o passar do tempo. E continuou a
jogar. Já não marcava golos. Defendia-os. Ficou conhecido como um dos melhores
guarda-redes na história do clube.
Onde outros abraçariam a desistência, movidos por razões
incontestáveis, Albino abraçou o futebol, movido pela certeza de que a
felicidade é uma conquista. Os montes, esses, continuariam a erguer-se. Para
si, eram uma oportunidade de subir mais alto.
© Elisabete Lucas
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